O Brasil do inverno
 



Cronicas

O Brasil do inverno

Myrthes Gonzalez


Nasci no Sul, meu estado faz fronteira com o Uruguai. Isso, a Pampa. Pois é, lá tem inverno. É, não é todo Brasil que é tropical. Não, não tem coqueiros nem água de coco, tem chimarrão.

Lá onde nasci é montanha, uma região de colonização italiana, lembra a Toscana, mas foi colonizada por imigrantes vênetos. Sim, tenho sangue italiano por parte de mãe, mas minha família de Flores da Cunha é de origem espanhola. Meu avô, pai de meu pai, foi para lá como médico no início do século vinte. Não havia serviço de saúde na região, então Dr. Antônio, recém-formado, casou-se com a jovem Alice, minha avó, e foram morar na cidadezinha.

Em 1964 meus pais moravam em Porto Alegre, iniciavam a vida profissional e não tinham muitos recursos financeiros. Meu avô era dono do pequeno hospital de Flores da Cunha, e seu único médico. Então, em março daquele ano, um pouco antes do golpe militar, eu vim ao mundo pelas mãos dele. Minha estada na cidadezinha foi apenas para nascer, logo após já estava na capital.

Voltava para Flores da Cunha nas férias de inverno. Via TV estendida no sofá, aquecida pela lareira da sala, aprendia a fazer tricô, comia pinhão e sopa de capelete. Apreciava o amanhecer com os campos brancos e úmidos de geada. O ar frio tinha cheiro de lenha. Não acontecia todo ano, mas de vez em quando nevava.

Eu devia ter uns oito anos na primeira vez em que lembro ter visto um campo nevado. Acordei e olhei pela janela. Estava tudo branco. Coloquei luvas e gorro de tricô e fui brincar no pátio, inspirada em filmes americanos que assistia na Sessão da Tarde. Estava com umas primas, fizemos guerra de bolas de neve e depois modelamos um boneco de gelo.

Logo percebi que algo estava errado, minhas mãos estavam tão geladas que não fechavam mais. Na brincadeira a neve derreteu e atravessou as luvas de lã, virando água congelada.

Corri para a cozinha, onde havia um enorme fogão a lenha. Era tão grande que tinha um boiler que aquecia a água para o banho. Atrás dele havia um varal para que o calor do fogo secasse as roupas. Era um fogão industrial que foi comprado em dupla quando o hospital foi construído. Dona Alicinha gostava de cozinhar. Tinha oito filhos e, na minha geração, uma dezena de netos. Então, o fogo estava sempre aceso.

Minha avó posicionou uma cadeira na parte do fogão mais afastada da boca de alimentação de lenha. Lá havia um calorzinho doce e acolhedor. Abriu a porta de um dos fornos, a mais afastada da origem do fogo, pediu que eu descalçasse os sapatos e colocasse os pés ali dentro. Depois repousei minhas mãos, já sem luvas, sobre a chapa e fiquei ali descansando, bebericando um chazinho de erva-cidreira cheio de açúcar.

É, eu sei, ninguém pensa que vai ver essas coisas no Brasil.

Myrthes Gonzalez é psicóloga e facilitadora de Biodanza. Autora dos livros Momentos Estruturantes e A Cura Ancestral. Participa do Curso Online de Formação de Escritores

 

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